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A dor forte fez o pesado corpo arquear; a musculatura da
face contraiu-lhe as feições e a expressão tornou-se ainda mais rude.
Como se possuísse um útero, uma hystera, sentiu que ia parir. Correu para a cozinha de seu
apartamento funcional. Bebeu, da torneira da pia, goles de água com gosto de
cloro; ergueu a cabeça para o alto querendo facilitar a passagem da água pela traqueia.
Parir pela boca? Não! Engoliu saliva repetidas vezes pensando
unicamente em controlar a dor até, finalmente, acalmar suas entranhas. O
esforço cansou-lhe as pernas mas conseguiu arrastar-se até a sala; sentou-se à
poltrona diante da enorme janela que dava para o pátio onde, em sonhos recorrentes,
via a multidão aclamá-lo como Rei!
Adormeceu. Era tarde da noite e o silêncio o dominou. Tanto
gostava daquele sonho que esperava poder repeti-lo. O povo em êxtase a
gritar-lhe o nome ... costumava acordar mais feliz, leve; dava-lhe ânimo para
voltar ao trabalho e seguir adiante em sua missão que considerava nobre.
Mas naquela noite não sonhou. A ebulição em seu abdômen
disforme recomeçou enquanto roncava; o gosto amargo na boca, a falta de ar e o
suor que escorreu por seu pescoço fizeram-no despertar. As cólicas, agora,
eram ainda mais fortes. Aquilo que lhe servia de útero pulsava freneticamente
no ritmo de seu coração: vou explodir, pensou!
Ao tentar levantar e correr, escorregou. Os braços quiseram
apoiar o peso de seu corpo mas, sem resistência, cederam e sua cara bateu forte
no carpete de 10 milímetros na cor marfim. Perdia o controle, começava a expulsar o ser que ele aprisionara com tanto esforço, com tanto
senso de dever cumprido, como em resposta à multidão de seus sonhos.
Por impulso, a boca abriu-se e um líquido quente e viscoso
começava a ser expelido. Preciso engolir, preciso engolir, pensou, mas não havia
mais o que pudesse conter sua presa.
Então ele pariu manchando de líquidos e sangue o carpete.
Sua garganta parecia rasgar, a dor intensa o fez desfalecer durante o parto,
perdeu os sentidos por não mais que dois minutos, a tempo de ver José Dirceu
estatelado no chão sujo, nú, olhos arregalados de terror.
Recobrou as forças rapidamente. De um salto, ergueu o corpo do
chão e, sem pensar duas vezes, tomou a criatura imunda em suas mãos e abriu a
boca para voltar a engolir seu monstro. Teve dificuldade, é certo, mas era a única
coisa a fazer no momento. Ainda estava quente e viscoso. Engoliu e aprisionou
novamente em suas entranhas aquela aberração que só ele era capaz de dominar e prender.
Amanheceu e ele, depois de limpar o chão da sala e mesmo com
o incômodo que sentia, foi trabalhar. Tinha esperança de que aquilo nunca mais
voltasse a acontecer.
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